Estamos a entrar no tempo do mundo-às-avessas, das Festas dos Inocentes ou das Doze Noites Santas que se seguem ao Natal e antecedem a Epifania. A tradição que as envolve é complexa e tem como antecedente uma noção pendular do Tempo que Platão também teorizou no mito do político. No início O demiurgo segurou na mão o mundo e balançou-o como a um pêndulo. Num primeiro impulso, o balanço foi responsável pelo Tempo de Cronos (o antecessor grego de Saturno, que devorava todos os filhos temendo o destino de ser morto por um deles).

Lucas Cranach, Golden Age

Esta foi a Idade do Ouro, o tempo perfeito incorruptível em que não existia procriação pois os seres nasciam do solo-numa associação ao mito de Cadmus e todos viviam numa eterna primavera em cuja felicidade se deixaram adormecer.
Depois, o movimento de balanço foi progressivamente retardando até se imobilizar e o mundo balançou em sentido inverso, entrando no tempo de Zeus (o filho temido que destronou Cronos) e em cujo tempo nós vivemos.

A noção de balanço pendular do Tempo continuou a repercutir numa série de tradições populares que se concentram de forma paradigmática nas doze badaladas da noite de Natal como um momento de passagem para o Além. Quando chega a meia-noite a porta dos dois batentes abre-se lentamente para esse tempo mítico até soarem as 6 primeiras badaladas e depois volta-se a fechar-se inexoravelmente até terminarem as seis últimas.
Os dias que se seguem ao Natal mimam este momento como se fossem doze pequenos meses de tempo de retorno à Idade do Ouro, ao governo de Cronos- o tempo da eternidade em que os meninos já nascem sábios, comandando um mundo idílico dessa Idade pré-humana.
Nestes dias tudo devia ser invertido tal como o balanço de retorno pendular. Era um momento de escatologia de Festas de Loucos e Carnavais em que os dias se vivam como noites e as noites como dias. As vigílias ganhavam a dignidade festiva e só pela madrugada é que se recolhia à cama, pois o próprio Sol também deveria erguer-se a Oeste e pôr-se a Nascente, assim como a missa devia ser dita às avessas e a Epístola lido no lugar do Evangelho.
Em posição simétrica e inversa, o solstício de Verão celebrava-se no Sol da meia-noite, a que se seguia a invertida festa da noite do meio-dia numa síntese dos dois grandes momentos da purificação e renovação: o fim da Canícula de Verão e o solstício de Inverno.

Era também durante este breve momento de supressão do tempo que se acreditava que os ursos davam uma volta no sono hibernal, fazendo com que a pele se revirasse do avesso, de forma a evitar o envelhecimento e a magreza. Plínio o Velho afirmava mesmo que toda a gordura conservada em potes aumentava de volume durante este tempo de abundância.
Na tradição popular dizia-se que o berço do menino de Jesus estava a ser embalado durante as doze santas noites, no final das quais o menino já se encontrava pronto para andar pelo seu próprio pé.
Por esse motivo só se desmontava o presépio no dia da troca de presentes ou dos Reis Magos, altura em que as crianças viam o berço vazio do menino Jesus e para as consolar eram presenteadas com pequenos doces em forma de berço.

Estas lendas tinham paralelo no Corão, no embalar do sete jovens santos de Éfeso que segundo a lenda foram mártires cristãos fechados numa gruta e mantidos adormecidos durante centenas de anos à custa do balançar divino.
A lenda também teve os seus pequenos remoques satíricos. Uma das explicações para o riso Pascal, que a todos atacava, é contada Por Jaques de Voragine teve por protagonista o rei Eduardo o Confessor de Inglaterra. Um dia, durante a missa Pascal, o monarca entrou numa espécie de transe e desatou às gargalhadas perante a estupefacção geral. Passados uns momentos voltou a si e explicou que o espírito tinha sido levado para um outro Tempo no Além, e ele estava a rir-se porque acabara de ver Deus a deitar pelo berço fora os sete santos de Éfeso, ao virar o balanço do Mundo.
O riso Pascal mais não era que o culminar deste tempo invertido em que os disparates das crianças e dos loucos permitiam que a verdadeira sabedoria fosse reposta de forma primordial. Por este motivo também era costume representarem-se os putti da Idade de Outro com máscaras ou faces de velhos.
Numa das misericórdias do cadeiral da Sé do Funchal pode ver-se uma figurinha com corpo de menino e cabeça de velho que tapa a os ouvidos enquanto anda. Tudo indica que seja uma alusão ao dito “fazer orelhas moucas a falas vãs”, ou evitar os “pecados das orelhas”m neste caso sob a forma do menino sábio que tudo tem a ensinar aos comuns mortais sujeitos a um tempo impuro.

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Jan Steen, Twelfht Night Feast, 1662

imagens:

-Lucas Cranach, A idade do ouro (com 12 doze pares
-Cadmus a semear os dentes do dragão de onde nascem os spartoi. Finais séc. CV, iluminura de versão das metamofoses de Ovídeo.
-os sete santos de Éfeso, pintura bizantina

misericórdia cadeiral do Funchal, menino-velho a tapar ouvidos (pecados de orelhas)

ver: Claude GAIGNEBET, J. Dominique LAJOUX, Art profane et religon populaire au Moyen ge, PUF, Paris, 1985

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